O papa Francisco que chega ao Brasil para a JMJ nos próximos dias, tem sido alvo de textos midiáticos sem conta; a maioria é otimista e elogiosa. Seria me contradizer se pegasse carona nesse coro. O primoroso teólogo José Arregi, em entrevista divulgada pelo IHU, condiz melhor com o que penso. Divido-a em duas edições sucessivas, dada sua extensão.
“A questão é inverter a lógica hierárquica, o
modelo vertical e clerical da Igreja e de seus ministérios”, afirma o teólogo
José Arregi
Não chega a acreditar [nesse momento de empolgação com o novo Papa] e pede decisões efetivas e concretas, ou, melhor ainda, a mudança
total do sistema eclesiástico. O teólogo basco José Arregi acredita que não basta a simplicidade do Papa e que “falta um programa de reformas profundas”. Para Francisco, ele receita a “transparência como a melhor arma
contra as tramas na Cúria” e pede que a Igreja se dedique “mais a
dar de comer, do que a defender dogmas”.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada no sítio Religión Digital, 16-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A renúncia de Bento XVI é um gesto profético, revolucionário ou forçado pelos escândalos?
E como poderemos saber, se não nos foi dito ou guardamos fundadas
suspeitas de que a explicação dada (seu estado de saúde) não era a única razão
e, talvez, nem sequer a razão decisiva? O Vaticano é um mundo opaco, amordaçado
em sua complexidade e na confusão de seus interesses e relações de poder, assim
como todas as grandes instituições, e inclusive mais. Entretanto, a Igreja deveria ser um lugar de transparência,
um exemplo de simplicidade, um modelo de fé na verdade, ingênua e crítica ao
mesmo tempo. Jesus disse: “Diga sim
quando for sim, e diga não quando for não”, com todos os riscos. No entanto, no
Vaticano não é assim, e somos obrigados a falar do que não sabemos.
Dito isso, eu diria também que sua renúncia foi mais por seu
aborrecimento diante da Cúria do que pelo seu estado de saúde. Talvez, quis que
o sucessor adotasse mais livremente as medidas que ele desejava, mas não podia.
Seja como for, aqueles que comemoram sua renúncia, como gesto de humildade ou
de coragem, indiretamente, censuram a arrogância ou a covardia de João Paulo II, que numa situação
pior não renunciou.
De qualquer modo, considero que a renúncia de Bento XVI seria realmente profética se tivesse
explicado as verdadeiras razões ou, mais ainda, caso tivesse dito: “No Vaticano
são necessárias estas reformas e as demais. Entretanto, eu não posso
realizá-las por essa razão e por essa outra. De modo que eu saio para que o
sucessor as realize”.
Como é possível que uma instituição que
havia atingido o fundo, em menos de um mês, renasça como a Fênix?
Temo que pareça muito cético, mas acredito que ainda está para ser visto
se a instituição vaticana será capaz de renascer e, sobretudo, de voar. Não
resta dúvida de que o papa Francisco, com alguns gestos e
algumas palavras muito simples – e com um enorme aparato midiático, não se
esqueça –, conseguiu levantar, não o voo, mas, sim, um vento de entusiasmo e
esperança.
A esperança é o mais ativo e transformador, mas os ventos se acalmam ou
mudam logo de direção. Também pode acontecer que o entusiasmo deixe, rapidamente,
lugar para a desilusão.
A grande fragilidade desta onda de entusiasmo, que ainda continua viva,
é que tudo depende de uma pessoa, de seu carisma e de seu poder pessoal
absoluto. A instituição católica é uma monarquia absoluta fortemente
secularizada, e enquanto não mudar o sistema monárquico ou não for desmontada
sua legitimação teológica, sua reabilitação será apenas aparente ou, inclusive,
pode ser contraproducente, pois pode contribuir para reforçar o caráter
absolutista e personalista do sistema. Eu acredito que seria melhor que essa Fênix eclesiástica, para continuar com a imagem, não
renasça. O renascimento de suas cinzas significaria continuar ancorados no
Antigo Egito. O que falta é reinventar a instituição ao ar do Espírito que alenta e recria.
O que faz com que o papa Francisco
tenha o apoio da opinião pública e, o que é mais difícil, do que é publicado?
Um rosto bondoso, um gesto de simplicidade natural, uma palavra
improvisada e fresca... continuam sendo o que mais nos conquista e atrai. É o
que mais nos ajuda a recuperar nossa fé em nós mesmos, na humanidade, no futuro
mais humano e fraterno. E necessitamos tanto e tanto disto! Precisamos de
figuras para enxergar nossa imagem pessoal e coletiva restaurada (para não
dizer eclesial ou eclesiástica...), que está tão desfigurada. Necessitamos de
espelhos que nos reflitam da maneira mais límpida, com o melhor de nosso ser.
Para isto, não há melhor espelho do que a bondade de um rosto, a humildade de
um gesto, a autenticidade de uma palavra... Acredito que tudo isso está
contemplado no papa Francisco, e explica seu
atrativo midiático.
Depois, uma vez mais, surgem as dúvidas: até que ponto é uma figura
genuína e até que ponto é uma figura fabricada pelos próprios meios de
comunicação? O que a imprensa cria, a imprensa destrói ou simplesmente esquece.
É ainda muito cedo para se pronunciar sobre o alcance desta figura e,
sobretudo, a respeito de seus projetos de reforma na Igreja.
Seus gestos serão consolidados em
decisões e em reformas reais?
Pra mim é difícil falar disto e, de qualquer modo, sou muito sensível ao
caráter imprevisível do futuro, mais acentuado ainda em nossos tempos de
informação globalizada e de mudanças aceleradas. Ninguém havia previsto a queda
do bloco soviético, nem a primavera árabe, como também não se
previa a chegada de João XXIII...
Já se passaram três meses, desde sua eleição, e ainda não foi visto
nenhum sinal claro no papa Francisco. Não ouvi de sua
boca nenhuma mensagem realmente inovadora. O que percebemos é o seu estilo
simples, a naturalidade de seu olhar e de sua palavra, sua atitude acolhedora,
e isso tudo é o melhor que podemos esperar de uma pessoa, mas para um Papa não basta, falta um projeto de reformas profundas. O que ouvimos de sua
boca são palavras de alento, de ternura, de solidariedade com os pobres, e isto
é fantástico. Contudo, o que podemos pedir de um Papa, seja qual for?João Paulo II pronunciou discursos e escreveu encíclicas muito boas sobre a justiça, contras
as desigualdades, em favor de um modelo diferente do capitalista... Ainda não
encontro no papa Francisco novidade alguma,
tampouco nesse campo.
O mais inovador e esperançoso na mensagem deste Papa, nesse momento, não é tanto o que disse, mas o que não disse: não falou
contra o mundo atual – como faziam freqüentemente seus dois predecessores -,
acusando-o de relativista, hedonista, materialista, incrédulo...
No entanto, o que mais suscita dúvidas no papa Francisco é, também, o que não disse: em três meses,
não disse nada contra a ditadura neoliberal das entidades financeiras e multinacionais (pelo contrário, expressou
seus pêsames pela morte de Margaret Thatcher), nem a favor da
canonização de dom Romero, da igualdade da
mulher na Igreja em todos os campos, da reforma moral sexual ou do Direito Canônico, no que diz respeito aos divorciados,
em favor das religiosas dos Estados Unidos ou da reabilitação dos teólogos
condenados...
Não disse nada sobre as reformas de fundo, que a meu modo de ver se
impõem na Igreja, no mundo de hoje,
para além das reformas da Cúria, por mais profundas que estas devam ser e
serão. Elas não bastarão.
A reforma de fundo consistiria em
reativar o congelado Vaticano
II, durante os últimos 35 anos?
Nem sequer isso. Você vai dizer que sou muito maximalista. Concordo. As
reformas de fundo não podem ser repentinas, mas acredito que é importante ter
claro o horizonte para o qual devemos avançar. Insisto: não bastará “reativar o Vaticano II”. A primeira questão que precisa ser esclarecida é
a respeito do estamos falando quando mencionamos o Vaticano II. João Paulo II e Bento XVI repetiram, uma vez e outra, que estavam
aplicando o Concílio. O Catecismo da Igreja Católica está cheio de
citações do Vaticano II, certamente feitas
de forma muito seletiva e enviesada.
Portanto, o problema é sobre qual a leitura que se faz do Concílio. O problema é se ficamos na mera repetição da
letra do Vaticano II ou se prolongamos seu
espírito. Contudo, o problema também é o próprio Concílio, pois seus documentos são sempre, como não poderia ser diferente
naquele momento, formulações de compromisso entre o setor tradicionalista e o
setor renovador dos padres conciliares. O problema é que o Vaticano II não formulou, em termos precisos, um novo modelo de Igreja não clerical, nem hierárquica, uma Igreja democrática, nem um novo paradigma teológico pluralista, uma nova maneira de
entender os dogmas (em especial, os dogmas cristológicos)... E não disse nada
sobre a mulher. E deixou intacto o poder absoluto do Papa e sua infalibilidade...
De tal maneira que a pergunta é: O que ocorre nos documentos do Vaticano II para que, cinquenta anos depois, possam
ter desativado, citando o próprio Concílio e em seu nome, os
sonhos provocados em muitos? Isso significa que é preciso avançar muito além do
lugar em que Vaticano II chegou. Desde então,
o mundo mudou muito. Não faz sentido que queiramos reativar o passado. É
preciso reinventá-lo e prolongá-lo, seguindo seu impulso, seu espírito.
Continua no próximo post. |
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