A Agencia ADITAL publicou um artigo do historiador da igreja, Eduardo Hoornaert, ( que já citei várias vezes neste blog), intitulado: Reflexões sobre a JMJ. Vou resumir uma
parte inicial do seu texto e depois vou colocá-lo na integra.
Resumo:
Hoornaert não saiu de casa para
sentir-se em condições de analisar vários momentos da JMJ do Rio; acompanhou
tudo graças às modernas tecnologias da informação. Baseado no que viu e ouviu,
escreve um texto com algumas reflexões sobre o evento.
Percebeu o encantamento que a
jornada deixou em muitos, e até no papa.
Assinala que o principal responsável
pelo sucesso, foi o povo anônimo e acolhedor nas ruas. “ É a imensa multidão das pessoas
anônimas que “fez” e continua “fazendo” o papa” escreve.
Dá em seguida, um mergulho em busca da fonte geradora desse acolhimento
e aponta: “ uma das mais misteriosas
e portentosas qualidades do ser
humano, a que damos o nome de religião.É ela que transfigura a pessoa do
papa e nos lembra a presença de Deus.Só uma minoria mais ligada às paróquias
enxerga em Francisco o chefe da igreja católica.” Observa porém, que essa
enorme energia religiosa é uma energia cega que pode ser direcionada para
projetos benéficos ou perniciosos.Pode construir ou destruir. Pergunta-se então:
“ Será que a JMJ escapou dessa tensão entre Espírito Santo (construtivo) e
espíritos destrutivos? Ele mesmo responde através de quatro apontamentos dentro
dessa problemática.
Transcrevo-os na íntegra.
“- Em primeiro lugar: o que dizer de
sinais de retorno à "uniformidade católica” dos tempos antes do concílio
Vaticano II? Durante a jornada, a tendência era bem visível no setor de padres
e bispos, mas também, de forma menos patente, entre os próprios jovens. Quando,
após o referido concílio, os padres abandonaram a batina e começaram a se
vestir como todo mundo, eles estavam procurando um melhor entrosamento com a
diversidade em sociedades sempre mais complexas e diferenciadas em que foram
chamados a atuar. Hoje há um movimento de regresso, e a TV mostrou flashes
esporádicos de uma maior afirmatividade católica, uma tendência no sentido de
se destacar na sociedade por meio de sinais exteriores. O cristianismo tem uma
longa história que oscila entre o apreço a sinais de diferenciação (na idade
média, por exemplo, judeus, islamitas e cristãos se vestiam de forma diferente)
e a vontade de universalização. Os períodos de acentuada distinção no vestuário
e no comportamento coincidem com períodos de "guerra religiosa”,
intolerância e fanatismo religioso. Por exemplo, qual foi o lugar reservado aos
protestantes nessa jornada mundial da juventude? Ou não se pensou nisso? Com
facilidade, sinais distintivos se transformam em sinais discriminatórios. O que
dizer hoje da frase de Paulo em sua carta aos Gálatas (3, 28): "não há
grego nem judeu, nem homem nem mulher, nem senhor nem escravo: todos unidos em
Jesus Cristo”? Isso significa: "não há protestante nem católico nem
espírita nem praticante de candomblé: todos unidos em Jesus Cristo?”
- Procurei em vão a bíblia nas
celebrações. Ela funcionou como parte da liturgia da missa (como
"epístola” e "evangelho”), mas não como "carro chefe” a puxar os
temários das celebrações. Em Copacabana, o centro do palco continuou sendo ocupado
pelo altar, não pela bíblia. Pois a bíblia é autônoma, ela reina acima dos
ritos, como Lutero não deixou de repetir insistentemente nos tempos iniciais do
protestantismo (século XVI). O tipo de cerimonial celebrado em Aparecida e
Copacabana nos leva quase irremediavelmente a futuros confrontos com os
cristãos evangélicos. Pois é claro que eles vão querer também reunir milhões de
pessoas "em nome de Jesus”. Isso pode nos levar a uma absurda espiral de
rivalidades sem fim e sem nenhuma perspectiva, a repetição de uma história que
comprovadamente não leva a nada senão a sofrimentos inúteis, rivalidades,
incompreensões e fechamentos (senão confrontos diretos). Tudo por nada. Pois a
história dos últimos quinhentos anos mostra que guerras religiosas não levam a
nada, apenas obscurecem o sentido genuíno do evangelho. Assistindo pela TV à
celebração final em Copacabana, voltei em memórias aos ritos de minha infância:
missa, adoração do santíssimo sacramento, via sacra. Revi até pessoas de
joelhos dentro do confessionário e a hóstia colocada na boca do comungante,
exatamente como 60 ou 70 anos atrás. Pensei também no congresso eucarístico de
1955, 58 anos atrás! Nada da capacidade inventiva, da originalidade e da
vitalidade do catolicismo latino-americano dos últimos 50 anos, nenhuma
referência aos círculos bíblicos, às comunidades de base, aos mártires
numerosos (Dom Oscar Romero, Dom Angelelli e Padre Enrique de Recife são apenas
exemplos), nada que lembrasse a geração de bispos representada pela figura de
Dom Helder Câmara.
- Achei o comportamento dos bispos
bastante formal e distante dos leigos, pelo menos nas celebrações. Eles ficavam
confinados em compartimentos exclusivos e tudo deu uma impressão muito
hierárquica, como nos "bons tempos”. Lembrei-me com saudade de posturas de
liberdade e autonomia por parte de bispos, por ocasião da visita do papa João
Paulo II aos Brasil em 1980. Pensei em Dom Antônio Fragoso, que se apresentou
ao papa em vestes civis e, diante da pergunta (recriminatória): "os bispos
no Brasil andam assim?”, respondeu "sim”. Ou em Dom Helder Câmara que,
durante o jantar na sua residência após o triunfo do papa nas ruas de Recife,
abriu os braços e disse em voz alta: "Pai (Deus), tudo isso é para vós, só
para vós!”. E ele comentou depois: o papa não gostou! Ainda recordo como Dom
Aloísio Lorscheider tentou (sem sucesso) convencer o papa de fazer uma visita
improvisada a um bairro popular de Fortaleza onde atuava uma comunidade de
base. Com isso não quero sugerir que é preciso opor-se ao papa. Não é disso que
se trata, mas de solidariedade com o povo de Deus, representado pelo bispo.
- Finalmente, há ainda a questão do
"estado laico”. Quase ninguém comentou o fato de que, durante dois ou três
dias, o líder de uma confissão religiosa particular "tomou conta” de uma
cidade tão diversificada como o Rio de Janeiro: praticantes do candomblé e de
religiões de cunho indígena ao lado de católicos, protestantes, espíritas,
judeus e ainda de pessoas que não professam nenhuma religião. O fato
praticamente não foi comentado e só ouvi falar de algumas pessoas que
reclamaram dos transtornos no trânsito. Mas o tema é importante, pois é bom
ficar atento aos perigos decorrentes de um enraizado
atavismo católico em termos de apropriação de espaços públicos, serviços
públicos e dinheiro público. Toda história da igreja no Brasil, desde
os inícios, é uma história de apropriação de terras alheias, as terras do
Brasil! Ainda no século XX, o presidente Vargas recomendava a seu ministro
Capanema, da educação, de abrir os cofres públicos para superiores ou
superioras de congregações religiosas católicas que viessem pedir dinheiro para
financiar seus colégios particulares. Essa longa história demonstra que a
igreja católica ainda tem muito a aprender em termos de convivência democrática
numa sociedade como a brasileira. Sabemos que grupos de interesse sempre tentam
se apropriar do que é público e a igreja católica não foge ao esquema. O estado
laico ainda tem muita luta pela frente nesse sentido, como nos mostraram
algumas mulheres que, fora do espaço reservado à jornada em Copacabana, tiraram
a roupa para, desse modo, conseguir acesso a mídia e poder mostrar, diante da
TV, um cartaz onde estava escrito ‘o
estado é laico’. Um gesto importante que passou largamente
despercebido.
Observação: os destaques são meus.