Como prometido no post anterior, segue o final da entrevista com o teólogo José Arregi.
Em sua avaliação, o que é mais urgente
na Igreja?
O mais urgente é que se recupere aquilo que é sua verdadeira entranha: o
alento e a compaixão. Que recupere o espírito de Jesus, feito de confiança e de misericórdia. Que volte a escutar da boca de Jesus as palavras que, uma vez e outra, pronuncia nos
evangelhos: “Não temais”. Que se volte a ler a parábola do Bom Samaritano e se deixe interpelar e desafiar. Que
olhe para as multidões famintas, assim como Jesus, e sinta realmente
compaixão, como ele, e se dedique a dar de comer, mais do que a defender
dogmas, normas morais e instituições do passado.
Ou seja, o mais urgente é que a própria Igreja se deixe evangelizar em suas pessoas e
estruturas e se atreva a transformar profundamente sua teologia e suas
instituições, para que possa anunciar, com uma linguagem compreensível, uma
palavra de alento ao mundo de hoje, e possa contribuir com todas as suas forças
para humanizar, a partir da compaixão com os últimos, de um paradigma ecofeminista, todas as estruturas
políticas e econômicas do planeta. Isto também é o mais urgente para o papa Francisco.
Vão deixa-lo fazer as reformas?
Para mim, a pergunta decisiva não é tanto se vão deixá-lo fazê-las, mas
se ele próprio desejará fazê-las. Segundo o Direito
Canônico e segundo a teologia de todos os que o elegeram, o Papa tem poder absoluto. Que o exerça, então, para fazer
as reformas que deseja fazer, caso realmente queira fazê-las. É contraditório
ser, como ainda é de fato, um Papa infalível e
plenipotenciário, e ceder diante das pressões e poderes exteriores. Pode ser
compreendido, mas é uma contradição. É a contradição de todo poder absoluto
concentrado numa só pessoa: sendo impossível que o exerça somente uma pessoa -
neste caso o Papa -, outros o exercem,
mas fora de todo o controle - neste caso a Cúria, mas não somente ela -.
E volto ao que disse antes: não basta um estilo mais simples, uma vida
mais austera, uma disposição mais acolhedora e dialogante. A questão é inverter
a lógica hierárquica, o modelo vertical e clerical da Igreja e de seus ministérios, o poder absoluto
do Papa, o paradigma teológico medieval ainda
vigente... Da mesma forma que um Papa impôs, no Vaticano I, os dogmas da infalibilidade e a primazia absoluta
do Papa, um Papa pode (e, no meu modo
de ver, deve) suprimir esses dogmas e devolver a palavra e o poder ao povo
crente. Sem isto, tudo continuará como antes ou, a qualquer momento, poderá
voltar a estar, dependendo do Papa que tenhamos.
Em que espaços existirão maiores
resistências: no povo, no alto clero...?
Acredito que as maiores resistências, ele encontrará em si mesmo, em
seus próprios esquemas teológicos ou em seus medos pessoais. Não digo que a
Cúria, o episcopado universal, cuja imensa maioria é muito conservadora, os
movimentos eclesiais neoconservadores que possuem imenso poder... não digo que
tudo isso não exerça muita pressão para evitar as reformas de fundo, mas o papa Francisco deverá fazer uso de sua sabedoria
inaciana e de sua liberdade franciscana para enfrentar as dificuldades com
simplicidade e coragem. E com transparência. A transparência
seria sua melhor arma contra as tramas na Cúria.
Os movimentos neoconservadores estarão dispostos a dividir espaços na Igreja?
É óbvio que esses movimentos buscam ocupar o máximo espaço de poder na Igreja. Isto, sim, com o argumento do serviço à Igreja e ao mundo atual, tão perdido segundo
eles. No entanto, essa não foi a opção de Jesus, nem o seu
ensinamento. Os movimentos neoconservadores são inimigos declarados da
democracia na Igreja, do pluralismo
teológico, da laicidade. Querem abarcar o espaço e o poder. Entretanto, a
imposição, o exclusivismo, o privilégio... não são boa notícia, não são sinais
do Espírito que habita no coração de todos os
seres. Na medida em que esses movimentos continuem se impondo na Igreja institucional, a Igreja irá se tornar um gueto social e
cultural. Já está se tornando isto.
Existe ilusão, entre as pessoas e o
clero, a respeito do novo Papa?
Acredito que sim. Parece incontestável que sim. E perdão pela insistência,
mas isso não me parece decisivo. O decisivo é que o Papa empreenda as reformas de fundo que mencionei antes,
sem as quais tudo se resumirá numa questão de estilo e de disposição. E se o Papa seguinte, como este, for eleito por alguns
cardeais, e continuar possuindo o poder absoluto, caso seu estilo e sua
mentalidade forem diferentes, então, poderá desfazer tudo o que foi feito,
recuar o caminho avançado, voltar à Igreja do passado.
Relembremos o papa João XXIII. Ninguém negará seu
estilo e seu carisma evangélicos. Abriu portas e janelas secularmente fechadas
e deixou que irrompesse adentro um autêntico vendaval; ninguém negará que
suscitou na Igreja um imenso movimento renovador... Entretanto, o que se passou, então,
para que, sessenta anos depois, estejamos onde estamos? Ou seja, onde estávamos
durante sessenta anos, pois, estamos agora celebrando a chegada de um novo Papa, que talvez volte a abrir as portas e janelas? O que ocorreu é que [João XXIII] não adotou as medidas imprescindíveis para que outro Papa não pudesse inverter a situação. Ou seja, enquanto
não se implantar na Igreja católica o modelo democrático,
enquanto todo o aparato institucional (bispos, sacerdotes...) não se renovar de
acordo com este modelo democrático e não clerical, enquanto o Papa não passar a ser uma espécie de Presidente (ou
Presidenta) democrático, eleito pelas diversas igrejas por tempo determinado e
sem poderes absolutos... a ilusão poderá se transformar em decepção.
E para dizer a verdade, nesse momento, eu não vejo nenhum sinal de que o
papa Francisco queira chegar até
esse ponto. Ouço-lhe falar de Deus, de Cristo, do pecado e do perdão, dos milagres, da Igreja, da mulher... dentro dos termos tradicionais,
mesmo que seja com um tom mais fresco e natural. É uma mudança de clima, mas
isto não bastará, pois o clima poderá mudar.
A mudança de clima também chega ou
chegará à diocese de São Sebastião e ao seu bispo, dom Munilla?
Parece que sim. A mudança de clima atual pode atingir ou, inclusive, já
está atingindo nossa diocese de São Sebastião. De fato – coisa
inacreditável, mas certa! -, na tarde do dia 13 de março, quando foi eleito
este Papa, a página web oficial da diocese
anunciou que havia sido eleito Ángelo Scolae que tinha adotado o
nome de Bento XVII..., e assim a versão
basca permaneceu, na página web da diocese, até a manhã seguinte. O que
ocorreu? Talvez tenha sido alguma informação precipitada, proveniente da
Itália. Talvez tenha sido o desejo de que o eleito fosse outro...
A dinâmica do medo na Igreja hierárquica
espanhola começa a ser rompida?
Oxalá! Parece que a posição de dom Rouco se fragiliza, por um lado, em razão da sua não distante substituição,
mas também pelos novos ares que correm, mesmo que sejam passageiros. Dá a
impressão de que vivemos num compasso de espera. Não sei. De qualquer modo,
parece que as grandes questões que preocupam o episcopado espanhol,
praticamente em todos, são a lei do aborto, o ensino religioso confessional nos
centros públicos, o financiamento da Igreja e a isenção do IBI. A batalha do casamento homossexual já deram como perdida, mas, também perderão as outras. É questão de
tempo. O Espírito e a Vida são inseparáveis.