Quinta, 13 de março de 2014 IHU
A importância das CEBs para as famílias: A proposta desconcertante de
Walter Kasper
"Sob o conceito de 'Igreja
doméstica', Kasper amplia o seu sentido por meio de uma visão
paulina, deixando de lado aquela percepção reduzida na 'família nuclear', e vê
a necessidade 'de grandes famílias de um novo tipo'", escreve Sérgio Ricardo Coutinho, mestre em História pela Universidade de Brasília - UnB e doutorando na
mesma área pela UFG. É professor do curso de pós-graduação lato sensu em
História do Cristianismo Antigo da UnB e presidente do Centro de Estudos em
História da Igreja na América Latina - CEHILA-Brasil. É assessor nacional da
Comissão Episcopal para o Laicato - CEBs.
Eis o artigo. (divulgado pelo IHU noticias )
Depois da grande novidade que foi o
envio de uma mensagem por parte do papa Francisco aos
participantes do 13º Intereclesial das CEBs, algo inédito na história destes encontros, agora uma nova surpresa.
Também vinda de Roma,
esta se fez chegar por meio do recente discurso proferido pelo cardeal Walter
Kasper no Consistório que debateu o tema do próximo Sínodo:
a Família. A surpresa, pouco percebida porque os analistas e jornalistas estão
ávidos por alguma mudança acerca do tema do acesso a Eucaristia para
os casais em segunda união, diz respeito à sugestão pastoral proposta pelo
cardeal para ajudar no fortalecimento dos núcleos familiares: as Comunidades
Eclesiais de Base (“Igrejas domésticas”).
De fato, o papa Francisco já
havia chamado a atenção para a importância delas na superação da “tentação do
clericalismo” quando do seu discurso aos membros do CELAM no
Rio de Janeiro em 28/07/2013. Para o Cardeal Kasper, as CEBs já
não são mais “uma esperança para a Igreja universal” (EN 58, 71), mas que “se
tornaram uma receita pastoral de sucesso”.
O Documento de Aparecida já
chamava a atenção para a necessidade de uma conversão pastoral em vista de uma
Igreja mais missionária, para isso sugeria no nº 372, em vista de uma reforma
nas estruturas, além da setorização da paróquia em unidades territoriais
menores, “a criação de comunidades de famílias que fomentam a colocação em
comum de sua fé cristã e das respostas dos problemas”.
Sob o conceito de “Igreja doméstica”, Kasper amplia o seu sentido por meio de uma visão
paulina, deixando de lado aquela percepção reduzida na “família nuclear”, e vê
a necessidade “de grandes famílias de um novo tipo”. Para que as famílias
nucleares possam sobreviver elas precisariam, segundo ele, “estar inseridas em
uma coesão familiar (...), em círculos interfamiliares de vizinhos e amigos em
que as crianças possam ter um refúgio na ausência dos pais, e em que os idosos
sozinhos, os divorciados e os pais sozinhos possam encontrar uma espécie de
casa”.
Exatamente sobre isso falaram os
bispos do Brasil em sua “Mensagem ao Povo de Deus sobre as Comunidades
Eclesiais de Base (CNBB, doc. 92): “É preciso valorizar as
experiências de solidariedade básica (...). O cultivo da reciprocidade tem como
espaço primeiro aquele onde a vizinhança territorial é importante para a vida
cotidiana, como em áreas rurais, bairros de periferia e favelas. É a
solidariedade entre vizinhos – melhor dizendo, entre vizinhas – que assegura o
cuidado com crianças, idosos e doentes, por exemplo”. (p. 8)
Kasper também surpreende ao buscar nas experiências das Igrejas
Metodistas sua definição de “Igreja Doméstica”: “eclesiola
in ecclesia, uma Igreja pequena dentro da Igreja”. E foi no “fim do mundo”, na
América Latina, África e Ásia, que estas “Igrejas domésticas” assumiram um
rosto na forma de “comunidades cristãs de base” (Basic Christian Communities)
ou de “pequenas comunidades cristãs” (Small Christian Communities).
O Documento de Aparecida procurou
usar estes mesmos dois termos (só com uma pequeníssima variação, ao invés de
“cristã” se escreve “eclesial”: “comunidades eclesiais de base” e “pequenas
comunidades eclesiais”), mas dando a entender que seriam realidades diferentes.
Os nos 178 e 179 descrevem bem as características eclesiológicas fundamentais
das CEBs, mas nos nº 99(e), 178 e 180, procura admoestá-las para a necessidade
de se manterem em “fidelidade ao Magistério” para não perderem seu
sentido eclesial. Com o intuito de “higienizar” as CEBs, Aparecida oferece um termo mais “asséptico” de “pequenas comunidades eclesiais” e faz uma
descrição delas nos nos 307 ao 310. Sabe-se muito bem que estes “acréscimos”
foram impetradas pelo falecido cardeal Afonso Lopez Trujillo.
Em sentido contrário, o cardeal Walter
Kasper não cai nesta “paranoia trujiliana” e as descreve em sua
plenitude eclesiológica com aqueles seus elementos estruturantes: martyria,
kérigma, leitourghia, koinonia e diakonia. As “comunidades eclesiais de base”
(Igrejas domésticas) “se dedicam à partilha da Bíblia”, da Palavra de Deus
“obtêm luz e força para a sua vida cotidiana” sendo “chamadas de modo
particular a transmitir a fé no seu respectivo ambiente”, possuem “uma tarefa
profética e missionária” e “o seu testemunho é sobretudo o testemunho de vida,
através do qual podem ser fermento no mundo” (testemunho de fé); “têm a
importante tarefa catequética de guiar rumo à alegria da fé” e “a evangelização
é a sua identidade mais profunda”(anúncio); “rezam juntas pelas próprias
intenções e pelos problemas do mundo” e a “eucaristia dominical [é] celebrada
por elas junto com a comunidade inteira como fonte e cume de toda a vida
cristã” (celebração da fé); “são lugares de uma espiritualidade da comunhão na
qual nos aceitamos reciprocamente em espírito de amor, de perdão e de
reconciliação, e em que se compartilham alegrias e dores, preocupações e
tristezas, contentamento e felicidade na vida cotidiana, no domingo e nos dias
de festa” (comunhão); e estão sempre ao lado dos “sofredores de todos os tipos,
às pessoas simples e aos pequenos”, sabendo que “Reino de Deus pertence
às crianças” (serviço).
No momento em que a Igreja do
Brasil se vê debatendo o documento de estudos proposto pela CNBB,
“Comunidade de comunidades: uma nova paróquia”, este discurso do cardeal Walter
Kasper confirma a opção pastoral que foi feita aqui ainda durante o Concílio
Vaticano II. Por isso, ele acerta em cheio no seu diagnóstico: “sem as
Igrejas domésticas”, sem as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),
“a Igreja é alheia à realidade concreta da vida. [Elas] São o caminho da
Igreja”.
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